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terça-feira, 2 de junho de 2009

Capítulo 6
Como S. Francisco abençoou o santo Frei Bernardo e o deixou como seu vigário,
quando passou desta para a outra vida


Era Frei Bernardo de tanta santidade, que S. Francisco tinha por ele grande reverência e freqüentemente o louvava.
Estando um dia S. Francisco devotamente em oração, foi-lhe revelado por Deus que Frei Bernardo, por permissão divina, devia sustentar muitas e pungentes batalhas com o demônio.
Pelo que S. Francisco, tendo grande compaixão do dito Frei Bernardo, a quem amava como a filho, muitos dias orou com lágrimas, rogando a Deus por ele e recomendando-o a Jesus Cristo, que lhe desse vitória sobre o demônio.
E orando assim devotamente S. Francisco, Deus lhe respondeu: "Não temas, porque todas as tentações, com as quais Frei Bernardo deve ser combatido, são por Deus permitidas como exercício de virtude e coroa de mérito; e finalmente de todos os inimigos alcançará vitória, porque ele é um dos comensais do reino de Deus".
Da qual resposta S. Francisco recebeu grandíssima alegria e rendeu graças a Deus: e daquela hora em diante lhe dedicou sempre mais amor e reverência.
E bem lho demonstrou não só em vida mas até na morte. Porque, vindo S. Francisco a morrer, como o santo patriarca Jacó, estando em tomo dele seus dedicados filhos doridos e lacrimosos pela partida de tão amado pai, perguntou: "Onde esta o meu primogênito? Vem a mim, filho, para que a 'mia alma te bendiga, antes de minha morte".
Então Frei Bernardo disse em segredo a Frei Elias, que era vigário da Ordem: "Pai, coloca-te à mão direita do santo, para que ele te abençoe".
E, colocando-se Frei Elias à mão direita, S. Francisco, que perdera a vista pelo muito chorar, pôs a mão direita sobre a cabeça de Frei Elias e disse: "Esta não é a cabeça do meu primogênito Frei Bernardo".
Então Frei Bernardo adiantou-se à esquerda; e S. Francisco, estendendo os braços em forma de cruz, colocou a mão direita à cabeça de Frei Bernardo e a esquerda na de Frei Elias, e disse a Frei Bernardo: "Abençoe-te o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo com todas as bênçãos espirituais e celestiais em Cristo: pelo fato de teres sido o primeiro escolhido nesta Ordem para dar o exemplo evangélico e seguir a Cristo na pobreza evangélica; porque deste o que possuías e o distribuíste inteira e livremente com os pobres pelo amor de Cristo, mas ainda te ofereceste a ti mesmo nesta Ordem em sacrifício de suavidade.
Bendito sejas, pois, por Nosso Senhor Jesus Cristo e por mim, seu pobrezinho servo, com bênçãos eternas, quer caminhando, repousando, velando e dormindo, vivendo e morrendo. Quem te bendisser fique cheio de bênçãos e quem te maldisser não fique sem punição.
Sê o principal entre os teus irmãos, obedeçam todos os irmãos ao que ordenares: terás licença para receber e expulsar a quem quiseres e nenhum irmão terá poder sobre ti, e ser-te-á permitido ir e habitar onde te aprouver".
Depois da morte de S. Francisco os irmãos amaram e reverenciaram a Frei Bernardo como a pai venerável: e estando a morrer, vieram a ele muitos irmãos das diversas partes do mundo, entre os quais, o hierárquico e divino Frei Egídio, o qual com grande alegria disse: "Sursum corda, Frei Bernardo, sursum corda"; e Frei Bernardo disse em segredo a um irmão que preparasse para Frei Egídio um lugar apto à contemplação, e assim foi feito.
Chegando Frei Bernardo à hora da morte, mandou que o erguessem e falou aos irmãos que estavam diante dele, dizendo: "Caríssimos irmãos, não vos quero dizer muitas palavras: mas deveis considerar que no estado de religião em que vivi vós viveis, e no em que estou agora vós ainda estais, e acho isto em minha alma, que por mil mundos iguais a este não teria querido servir a outro senhor senão a Jesus Cristo: e de todos os pecados que cometi me acuso e apresento a minha culpa ao meu Salvador Jesus e a vós.
Rogo-vos, irmãos meus, que vos ameis uns aos outros"- E após estas palavras e outros bons ensinamentos, deitando-se na cama, sua face encheu-se de esplendor e alegria desmedidos, de que os irmãos muito se maravilharam; e naquela letícia sua alma santíssima, cercada de glória, passou da presente à bem-aventurada vida dos anjos.
Pelo louvor e pela glória de Cristo. Amém.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Capítulo 5
Como o santo Frei Bernardo de Assis foi enviado por S. Francisco a Bolonha e ali fundou um convento

Porque S. Francisco e seus companheiros foram por Deus chamados e escolhidos para levar com o coração e as obras, e a pregar com a lingua, a cruz de Cristo, pareciam e eram homens crucificados, quanto às ações e à vida austera: e, portanto, desejavam mais suportar vergonha e opróbrios pelo amor de Cristo, do que ser honrados pelo mundo com reverências ou vãos louvores; rejubilavam-se com as injúrias e contristavam-se com as honras; e assim andavam pelo mundo como estrangeiros e forasteiros, nada mais levando consigo do que o Cristo crucificado.
E como eram verdadeiros ramos da verdadeira vide, isto é, Cristo, produziam grandes e bons frutos nas almas, as quais ganhavam para Deus. Sucedeu, no princípio da Ordem, S. Francisco mandar Frei Bernardo a Bolonha para que ai, conforme a graça que Deus lhe havia concedido, obtivesse fruto para Deus. E Frei Bernardo, fazendo o sinal-da-cruz, por santa obediência se foi e chegou a Bolonha.
E vendo-o as crianças, com hábito desusado e vil, zombavam dele e o injuriavam, como se faz com um louco. E Frei Bernardo, paciente e alegre, tudo suportava pelo amor de Cristo; até para que o pudessem maltratar melhor, pôs-se muito de propósito na praça da cidade; onde, se assentando, em torno dele se reuniram muitos meninos e homens; um lhe puxava o capuz por detrás, outro por diante, outro lhe atirava pó e pedra, outro o empurrava para cá e para lá; e Frei Bernardo sempre o mesmo, com a mesma paciência, com o semblante alegre, não se lastimava nem se aborrecia; e por muitos dias voltou ao mesmo ponto para suportar semelhantes coisas.
E por ser a paciência obra de perfeição e prova de virtude, um sábio doutor em leis, vendo e considerando tanta constância e virtude de Frei Bernardo em não se perturbar por tantos dias por nenhuma moléstia ou injúria, disse de si consigo: "Impossível é não ser este um santo homem".
E, acercando- se dele, perguntou-lhe: "Quem és? E por que vieste aqui?" E Frei Bernardo, como resposta, levou a mão ao peito e tirou a Regra de S. Francisco e deu-lha para que a lesse; e tendo-a lido, considerando-lhe o elevado estado de perfeição, com grandíssimo pasmo e admiração, voltou-se para os companheiros e disse: "Verdadeiramente é este o mais alto estado de religião, de que ouvi falar; e, portanto, este e os seus companheiros são dos mais santos homens do mundo, e comete grandíssimo pecado quem o injuria; o qual devia ser altamente honrado, porque é verdadeiramente amigo de Deus".
E disse a Frei Bernardo: "Se quiserdes ficar em um lugar em que podeis convenientemente servir a Deus, vo-lo darei de boa vontade, para a salvação de minha alma". Respondeu Frei Bernardo: "Senhor, creio que isto vos foi inspirado por Nosso Senhor Jesus Cristo, e portanto de boa vontade aceito vosso oferecimento para a honra de Cristo". Então o dito juiz, com grande alegria e caridade, levou Frei Bernardo à sua casa; e depois lhe deu o lugar prometido, e à sua custa preparou e arranjou tudo, e daí em diante se fez como pai e defensor de Frei Bernardo e de seus companheiros.
E Frei Bernardo, por sua santa conversação, começou a ser muito honrado por aquela gente, de modo que bem-aventurado se considerava quem nele podia tocar ou vê-lo. Ele, porém, como verdadeiro discípulo de Cristo e do humilde S. Francisco, temendo que a honra do mundo impedisse a paz e a salvação de sua alma, partiu dali e retornou a S. Francisco, e disse-lhe assim: "Pai, o convento está fundado na cidade de Bolonha: enviai irmãos que o mantenham e o habitem, porque nada de bom posso fazer, pois, devido às muitas honras que me prestam, temo perder mais do que ganhar".
Então S. Francisco, ouvindo todas estas coisas que Deus tinha realizado por Frei Bernardo, deu graças a Deus, que assim começava a aumentar os pobrezinhos discípulos da cruz; e logo mandou companheiros a Bolonha e à Lombardia, os quais instituíram muitos conventos em diversos lugares.
Em louvor e reverência do bom Jesus.

domingo, 31 de maio de 2009

Capítulo 4

Como o anjo fez uma pergunta a Frei Elias,guardião de um convento do vale de Espoleto, e porque Frei Elias lhe respondeu com soberba, partiu e seguiu o caminho de Santiago,onde encontrou Frei Bernardo e lhe contou esta história.

No princípio e fundação da Ordem, quando havia poucos irmãos e não havia conventos estabelecidos, S. Francisco, por devoção, se foi a Santiago de Galícia, e levou consigo alguns irmãos, entre os quais um foi Frei Bernardo; e seguindo assim juntos pelo caminho, acharam numa terra um pobre enfermo, do qual tendo compaixão, disse a Frei Bernardo: "Filho, quero que fiques aqui servindo a este enfermo"; e Frei Bernardo, ajoelhando-se humildemente e inclinando a cabeça, recebeu a obediência do santo pai e ficou naquele lugar; e S. Francisco com os outros companheiros foi a Santiago.
Ali ficando reunidos e estando de noite em oração na igreja de Santiago, foi por Deus revelado a S. Francisco que ele devia fundar muitos conventos pelo mundo; porque sua Ordem se devia dilatar e crescer em grande multidão de frades; e por esta revelação começou S. Francisco a estabelecer conventos naquela região.
E, voltando S. Francisco pelo mesmo caminho, encontrou Frei Bernardo mais o enfermo com o qual o havia deixado, e que estava inteiramente curado. E no ano seguinte permitiu a Frei Bernardo que fosse a Santiago; e assim S. Francisco voltou ao vale de Espoleto; e aí ficaram em lugar deserto ele e Frei Masseo e Frei Elias e alguns outros, os quais tinham muito cuidado em não aborrecer ou perturbar S. Francisco em sua oração; e isto faziam pela grande reverência que tinham e porque sabiam que Deus lhe revelava grandes coisas na oração. Sucedeu um dia que, estando S. Francisco em oração na floresta, um belo jovem, com trajo de peregrino, chegou à porta do convento e bateu com tanta pressa e tanta força por tanto tempo que os frades ficaram muito maravilhados daquele inusitado modo de bater.
Frei Masseo foi à porta e abriu-a e disse àquele jovem: "De onde vens tu, filho, que parece nunca teres vindo aqui, batendo de modo tão desusado?" Respondeu o jovem: "E como é que se deve bater?" Disse Frei Masseo: "Bate três vezes, uma após outra, devagar: depois espera que o irmão tenha rezado um pai-nosso e venha abrir, e se durante esse tempo ele não vier, bate; outra vez". Respondeu o jovem: "Tenho grande pressa, e bati com tanta força, porque tenho de fazer uma longa viagem, e vim aqui falar com o irmão Francisco; mas por ele estar agora em contemplação na floresta, não o quero incomodar.
Vai e manda-me Frei Elias, que lhe quero fazer uma pergunta, porque sei que' ele é muito sábio". Foi Frei Masseo e disse a Frei Elias que sé dirigisse àquele jovem: e ele se escandalizou e não quis ir; assim Frei Masseo não soube o que fazer nem o que responder àquele jovem; que, se dissesse: "Frei Elias não pode vir", mentia; se dissesse que ele estava irritado e não queria vir, temia dar-lhe mau exemplo.
E porque no entanto Frei Masseo demorasse em voltar, o jovem bateu outra vez como a princípio; e pouco depois Frei Masseo retornou à porta e disse ao jovem: "Não observaste o que te ensinei ao bateres".
Respondeu o jovem: "Frei Elias não quis vir a mim: vai e dize a Frei Francisco que vim para falar com ele; mas, por não querer perturbar-lhe a oração, dize-lhe que mande Frei Elias entender-se comigo". Então Frei Masseo foi ter com S. Francisco, que orava na floresta com a face erguida para o céu, e lhe deu conta da embaixada do jovem e a resposta de Frei Elias: e este jovem era um anjo de Deus, em forma humana.
Então S. Francisco, sem mudar de lugar nem baixar o rosto, disse a Frei Masseo: "Vai e dize a Frei Elias que por obediência atenda imediatamente ao jovem".
Ouvindo Frei Elias a ordem de S. Francisco, foi à porta muito perturbado e com grande ímpeto e ruído a abriu e disse ao jovem: "Que queres?" Respondeu o jovem: "Cuidado, irmão, não te irrites, como pareces estar, porque a ira tolhe o espírito e não te deixa discernir o verdadeiro". Disse Frei Elias: "Dize o que queres de mim". Respondeu o jovem: "Eu te pergunto se àqueles que observam o santo Evangelho é lícito comer o que se põe diante deles, conforme o que disse Cristo aos seus discípulos: e te pergunto ainda se é lícito a algum homem obrigar a qualquer coisa contrária à liberdade evangélica".
Respondeu com soberba Frei Elias: "Sei bem disto, mas não te quero responder; cuida de teus negócios". Disse o jovem: "Saberei melhor do que tu responder a esta pergunta". Então Frei Elias, furioso, fechou a porta e retirou-se. Depois começou a pensar nesta pergunta, a duvidar de si mesmo e não a sabia responder porque era vigário da Ordem e tinha ordenado e feito uma constituição, contra o Evangelho e contra a ordem de S. Francisco, de que nenhum frade da Ordem comesse carne; por isso a dita pergunta era expressamente contra ele.
Pois, não sabendo explicar por si mesmo e considerando a modéstia do jovem e porque este dissera saber responder à pergunta melhor do que ele, volta à porta e abre-a para pedir ao jovem resposta à pergunta: mas se tinha ido, porque a soberba de Frei Elias não era digna de falar com o anjo.
Isto feito; S. Francisco, a quem tudo era por Deus revelado, retornou da floresta e com veemência, em alta voz, repreendeu Frei Elias, dizendo: "Mal fizeste, Frei Elias soberbo, que expulsaste de nós os santos anjos que nos vêm ensinar. Digo-te temer muito que a tua soberba te faça acabar fora da Ordem". E isto sucedeu como S. Francisco predissera; porque morreu fora da Ordem.
No mesmo dia e à mesma hora em que o anjo partiu, apareceu na mesma forma a Frei Bernardo, o qual voltava de Santiago e estava à beira de um grande rio, e saudou-o em sua lingua, dizendo: "Deus te dê a paz, ó bom irmão".
E maravilhando-se muito Frei Bernardo, e considerando a beleza do jovem e a saudação feita em sua própria língua, com cumprimento pacifico e semblante alegre perguntou-lhe: "Donde vens tu, bom moço?" Respondeu o anjo: "Venho do convento onde vive S. Francisco e fui ali falar com ele; e não pude, porque estava na floresta contemplando as coisas divinas e não o quis incomodar. E naquele convento residem Frei Masseo, Frei Egídio e Frei Elias; e Frei Masseo me ensinou a bater na porta como fazem os irmãos, mas Frei Elias, por não ter querido responder à questão que lhe propus, arrependeu-se depois e quis ouvir-me e falar-me e não pôde". Após estas palavras, disse o anjo a Frei Bernardo: "Por que não passas à outra margem?" Respondeu Frei Bernardo: "Porque temo o perigo pela profundidade da água que vejo".
Disse o anjo: "Passemos juntos, não tenhas medo". Tomou-lhe a mão e, num abrir e fechar de olhos, pô-lo na outra riba do rio.
Agora Frei Bernardo conheceu que ele era anjo de Deus, e, com grande reverência e gáudio, disse em voz alta: "Ó anjo bendito de Deus, dize-me como te chamas". Respondeu o anjo: "Por que perguntas meu nome, o qual é maravilhoso?" E dizendo assim o anjo desapareceu e deixou Frei Bernardo muito consolado, de tal modo que toda aquela viagem fez com alegria, e tomou nota do dia e da hora em que o anjo lhe aparecera.
E, chegando ao convento onde estava S. Francisco com os sobreditos companheiros, narra-lhes em ordem todas estas coisas, e conheceram com certeza que aquele mesmo anjo tinha aparecido no mesmo dia e na mesma hora a eles e a ele e deram graças a Deus. Amém.

sábado, 30 de maio de 2009

Capítulo 3

Como S. Francisco, por um mau pensamento que teve contra Frei Bernardo,
ordenou ao dito Frei Bernardo que por três vezes lhe pisasse a garganta e a boca.


O devotissima servo do Crucificado, monsior S. Francisco, por causa da aspereza da penitência e contínuo chorar, ficara quase cego e quase não via o lume.
Uma vez, entre outras, partiu do convento, onde estava e foi ao convento onde vivia Frei Bernardo, para com ele falar das coisas divinas: e, chegando ao convento, soube que ele estava na floresta em oração, todo enlevado e absorvido em Deus. Então S. Francisco foi à floresta e o chamou: "Vem, disse, e fala a este cego"; e Frei Bernardo não lhe respondeu nada, porque, sendo homem de grande contemplação, tinha a mente suspensa e enlevada em Deus, e porque tinha a graça singular de falar de Deus, como S. Francisco tinha por vezes experimentado: e portanto desejava falar com ele.
Depois de algum tempo, chamou-o do mesmo modo, segunda e terceira vez; e de nenhuma vez Frei Bernardo o ouviu, por isso não lhe respondeu e não se foi a ele. Pelo que S. Francisco se partiu um pouco desconsolado; maravilhando-se e lastimando-se só consigo de que Frei Bernardo, chamado por três vezes, não lhe fora ao encontro.
Partindo-se com este pensamento, S. Francisco, quando se afastou um pouco, disse ao seu companheiro: "Espera-me aqui". Distanciou-se para um lugar solitário e, pondo-se em oração, rogava a Deus que lhe revelasse por que Frei Bernardo não lhe havia respondido; e assim estando, veio uma voz de Deus que lhe disse assim: "Ó pobre homenzinho, por que estás perturbado? deve o homem deixar Deus pela criatura? Frei Bernardo, quando o chamaste, estava junto de mim; e portanto não podia vir ao teu encontro, nem te responder; não te admires, pois, de que ele te não pudesse responder; porque estava tão fora de si que de tuas palavras nada escutou". Tendo tido S. Francisco esta resposta de Deus, imediatamente com grande pressa voltou a Frei Bernardo, para acusar-se humildemente do pensamento que tivera contra ele.
E Frei Bernardo, vendo-o vir para ele, foi-lhe ao encontro e lançou-se-lhe aos pés. Então S. Francisco o fez levantar-se e referiu-lhe com grande humildade o pensamento e a perturbação que tivera contra ele, e como Deus lhe havia respondido, assim concluindo: "Ordeno-te pela santa obediência que faças o que te mandar".
Temendo Frei Bernardo que S. Francisco lhe ordenasse alguma coisa excessiva, como soía fazer, quis honestamente esquivar-se desta obediência, e assim respondeu: "Estou pronto a obedecer-vos, se me prometerdes de fazer o que eu vos ordenar a vós". E prometendo S. Francisco, Frei Bernardo disse: "Ora, dizei, pai, o que quereis que eu faça".
Então disse S. Francisco: "Ordeno-te pela santa obediência que, para punir a minha presunção e a ousadia do meu coração, quando eu me deitar de costas, me ponhas um pé na garganta e outro na boca e assim passes sobre mim três vezes, envergonhando-me e vituperando-me e especialmente dizendo-me: 'Jaz para aí, vilão filho de Pedro Bernardone: de onde te vem tanta soberba, vilíssima criatura que és?"' Ouvindo isto, e bem que lhe custasse muito a fazê-lo, no entanto por santa obediência, o mais cortesmente que pôde, realizou o que S. Francisco lhe ordenara.
Isto feito, disse S. Francisco: "Ora, ordena-me o que queres que eu faça; porque te prometi obedecer". Disse Frei Bernardo: "Ordeno-te pela santa obediência que, todas as vezes que estivermos juntos, me repreendas e corrijas asperamente dos meus defeitos".
Do que S. Francisco muito se maravilhou; porque Frei Bernardo era de tanta santidade que ele lhe tinha grande reverência e não o reputava repreensível em coisa nenhuma; e por isso dali em diante S. Francisco evitava de estar muito com ele, pela dita obediência, a fim de não dizer alguma palavra de correção contra ele, o qual reputava de tanta santidade; mas, quando sentia vontade de vê-lo ou de ouvi-lo falar de Deus, dele se separava o mais depressa possível e se partia; e era motivo de grande devoção ver-se com que caridade e reverência e humildade o santo Pai Francisco tratava e falava com Frei Bernardo, seu filho primogênito.
Em louvor e glória de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Capítulo 2

De Frei Bernardo de Quintavale, primeiro companheiro de S. Francisco

O primeiro companheiro de S. Francisco foi Frei Bernardo de Assis, o qual assim se converteu. Trazendo S. Francisco ainda vestes seculares, embora já houvesse renegado o mundo, e andando todo desprezível e mortificado pela penitência de modo a ser tido por muitos como estúpido e escarnecido como louco, perseguido com pedradas e lodo por seus parentes e por estranhos, e passando pacientemente, por entre injúrias e zombarias, como surdo e mudo: monsior Bernardo de Assis, que era um dos mais nobres e ricos e sábios da cidade, começou sabiamente a considerar em S. Francisco o tão excessivo desprezo, a grande paciência nas injúrias e que, havia dois anos já assim abominado e desprezado por todos, parecia sempre mais constante e paciente, começou a pensar e a dizer de si para consigo: "Não posso compreender que este Francisco não possua grande graça de Deus"; e o convidou para cear e dormir em sua casa; e S. Francisco aceitou, e ceou e dormiu em casa dele.
E monsior Bernardo encheu o coração de desejos de contemplar a santidade dele: mandou preparar-lhe uma cama no seu próprio quarto, no qual sempre de noite ardia uma lâmpada. E S. Francisco, para ocultar sua santidade, logo que entrou no quarto, deitou-se e pareceu dormir; e monsior Bernardo também se deitou, depois de algum tempo, e começou a ressonar fortemente, como se estivesse dormindo profundamente.
S. Francisco, certo de que ele dormia, levantou-se e pôs-se em oração, levantando os olhos e as mãos ao céu; e, com grandíssima devoção e fervor, dizia: "Deus meu, Deus meu", e, assim dizendo e chorando muito, esteve até pela manhã, repetindo sempre: "Deus meu, Deus meu", e nada mais; e isto dizia S. Francisco, contemplando e admirando a excelência da divina Majestade, a qual se dignava condescender com o mundo que perecia, e preparava-se pelo seu pobrezinho Francisco a prover com o remédio da salvação a alma dele e as dos outros.
E então, iluminado pelo espírito de profecia, prevendo as grandes coisas que Deus ia realizar por seu intermédio e de sua Ordem, e considerando a sua insuficiência e pouca virtude, clamava e suplicava a Deus que, com a sua piedade e onipotência, sem a qual nada pode a humana fragilidade, suprisse, ajudasse e cumprisse o que pôr si só não podia.
Vendo monsior Bernardo, à luz da lâmpada, os devotíssimos atos de S. Francisco, e considerando devotamente as palavras que ele dizia, foi tocado e inspirado pelo Espírito Santo a mudar de vida; pelo que, ao amanhecer, chamou S. Francisco, e disse assim: "Irmão Francisco, estou inteiramente disposto, no meu coração, a abandonar o mundo e a seguir-te no que mandares". Ouvindo isto S. Francisco alegrou-se em espírito e falou: "Monsior Bernardo, isto que disseste é coisa tão grande e maravilhosa, que é preciso pedirmos conselho a Nosso Senhor Jesus Cristo e rogar-lhe que nos mostre a sua vontade e nos ensine o modo de executá-la: para isso vamos ao bispado, onde há um bom padre, e pediremos que celebre a missa; depois ficaremos rezando até Terça, pedindo a Deus que, abrindo o missal três vezes, nos mostre o caminho que lhe agrada seguir-mos".

Respondeu monsior Bernardo que isso era muito de seu agrado. Puseram-se a caminho e foram ao bispado; e depois de ouvirem a missa e estarem em oração até Terça, o padre, a pedido de S. Francisco, tomou o missal e, feito o sinal da santa cruz, o abriu por três vezes em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo: e na primeira vez apareceu aquela palavra que disse Cristo no Evangelho ao jovem que lhe perguntou pelo caminho da perfeição: "Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá aos pobres e segue-me"; na segunda, apareceu aquela palavra que Cristo disse aos apóstolos, quando os mandou pregar: "Nada leveis para a jornada, nem bordão, nem alforje, nem sandálias, nem dinheiro"; querendo com isto ensinar-lhes que deviam pôr em Deus toda a esperança na vida, e dar toda a atenção a pregação do santo Evangelho; na terceira abertura do missal apareceu aquela palavra que Cristo disse: "Quem quiser vir após mim, abandone a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me".

Então disse S. Francisco a monsior Bernardo: "Eis o conselho que Cristo nos dá: vai, pois, e faze exatamente como ouviste: e seja bendito Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se dignou mostrar-nos seu caminho evangélico".

Ouvindo isto, partiu monsior Bernardo e vendeu o que possuía, porque era muito rico: e com grande alegria distribuiu tudo aos pobres e às viúvas e aos órfãos, aos prisioneiros, aos mosteiros, aos hospitais e aos peregrinos; e em cada coisa S. Francisco fielmente e prudentemente o ajudava. Ora, vendo um por nome monsior Silvestre, que S. Francisco dava e mandava dar tanto dinheiro aos pobres, cheio de avareza disse a S. Francisco: "Não me pagaste por inteiro aquelas pedras que me compraste para consertar a igreja e agora, que tens dinheiro, paga-me".

Então S. Francisco, maravilhando-se de tanta avareza e não que rendo questionar com ele, como verdadeiro seguidor do Evangelho, meteu as mãos na sacola de monsior Bernardo e, enchendo-as de moedas, derramou-as na sacola de monsior Silvestre, dizendo que, se mais quisesse, mais lhe daria.

Satisfeito monsior Silvestre com aquilo, partiu e voltou a casa: e de tarde, repensando no que fizera durante o dia, e arrependendo-se de sua avareza, e considerando o fervor de monsior Bernardo e a santidade de S. Francisco, na noite seguinte e em duas noites outras teve de Deus esta visão: que da boca de S. Francisco saía uma cruz de ouro, cujo cimo tocava o céu e os braços se estendiam do oriente ao ocidente.

Por causa desta visão ele deu por amor de Deus o que possuía e fez-se frade menor, e viveu na Ordem com tanta santidade e graça, que falava com Deus, como um amigo faz com outro, conforme S. Francisco muitas vezes verificou e além se declarará.

Monsior Bernardo, semelhantemente, recebeu tantas graças de Deus, que com freqüência ficava arroubado em Deus em contemplação: e S. Francisco dele dizia que era digno de toda a reverência e que havia sido ele o fundador daquela Ordem: porque fora o primeiro a abandonar o mundo, nada reservando para si, mas dando tudo aos pobres de Cristo, e tinha começado a pobreza evangélica, oferecendo-se nu aos braços do Crucificado: o qual seja por nós bendito in secula seculorum. Amém.